Em 1990, durante uma viagem a Roma, José Saramago sofreu um descolamento da retina — um episódio súbito e potencialmente grave que ameaça a visão e exige intervenção urgente. Para o escritor, a experiência não foi apenas um evento médico, mas uma revelação. Foi nesse momento que percebeu, com nitidez perturbadora, que a cegueira era real e possível.
Pouco tempo depois, enquanto almoçava sozinho num restaurante, fez-se uma pergunta aparentemente simples: “E se fôssemos todos cegos?”. A resposta, para Saramago, foi imediata e inquietante: “De certo modo, já estamos.” Dali nasceu o germe de uma das suas obras mais marcantes — Ensaio sobre a Cegueira (1995), um romance brutal e poético que questiona a condição humana, a fragilidade da civilização e o que resta de humanidade quando a visão desaparece.
Saramago considerava este livro como “o caminho da estátua à pedra”, uma inversão simbólica: da forma acabada (a estátua) para o estado bruto (a pedra), num regresso à essência. Paradoxalmente, foi a ameaça da escuridão física que acendeu nele uma luz literária poderosa. A cegueira, neste caso, não foi fim, mas ponto de partida para ver melhor — e para nos fazer ver, com olhos novos, o mundo que julgávamos conhecer.
Inês Leal