Ray Charles – Sobre a perda visual na infância e a luta contra a exclusão

Reconhecido como uma das figuras mais influentes da música do século XX, Ray Charles foi um pianista, cantor e compositor pioneiro, envolvido na génese da “soul music”. O seu talento musical não só transcendeu as adversidades da pobreza extrema e do racismo institucionalizado no sul dos Estados Unidos, mas também de um outro evento determinante na sua vida: a perda da visão durante a infância.

Ray Charles nasceu a 23 de setembro de 1930, e foi criado em Greenville, na Flórida, onde passou a sua infância. Aos cinco anos de idade foi profundamente afetado por uma confluência de eventos trágicos: testemunhou o afogamento acidental do seu irmão mais novo e, de forma quase concomitante, iniciou um processo de perda visual progressiva que culminou em cegueira total aos sete anos de idade.

Apesar da ausência de um diagnóstico conclusivo à época, as avaliações posteriores sugerem que a causa mais provável da sua amaurose foi o glaucoma juvenil. Esta patologia está associada a um aumento da pressão intraocular e pode causar danos irreversíveis no nervo ótico se não for atempadamente tratada. Infelizmente, no contexto familiar e económico de Ray Charles, o acesso a cuidados médicos especializados foi impossível, o que inviabilizou qualquer possibilidade de diagnóstico e tratamento atempados.

Aretha Robinson recusou-se a permitir que a dependência de terceiros definisse o futuro do seu filho. Através de uma abordagem pragmática e constante, insistiu que Ray aprendesse a realizar tarefas domésticas, a orientar-se pela casa e pela vizinhança e a tornar-se autossuficiente, tal como qualquer outra criança. Aretha ensinou-o também a usar a sua audição e a sua memória como ferramentas primárias de perceção. Tarefas como cortar lenha ou ir buscar água obrigaram-no a desenvolver uma consciência espacial e auditiva extraordinária. Foi esta base, construída sobre a recusa de uma mãe em aceitar a condição do seu filho como uma limitação incapacitante, que permitiu a Ray Charles não só sobreviver, mas também desenvolver as faculdades que mais tarde definiriam a sua genialidade musical.

A sua matrícula na Escola para Surdos e Cegos da Flórida, em St. Augustine, constituiu outro ponto crucial na sua formação, permitindo o cultivo formal do seu dom musical. Nessa instituição, adquiriu competências em leitura, escrita e composição musical em Braille, e alcançou a mestria de múltiplos instrumentos, como o piano, o órgão, o saxofone e o clarinete.

A privação visual impeliu Ray Charles ao desenvolvimento extraordinário das suas restantes faculdades sensoriais, com particular ênfase na audição. A sua capacidade de memorização musical atingiu um nível prodigioso, capacitando-o para a composição e arranjo de peças de elevada complexidade, recorrendo exclusivamente a processos mentais.

Esta trajetória suscita uma reflexão pertinente: é plausível que Ray Charles não tivesse desenvolvido a mesma capacidade auditiva e criativa caso não tivesse perdido a sua visão; mas é ainda mais provável que o mesmo não tivesse ocorrido na ausência desta estimulação à orientação e mobilidade, autonomia nas atividades de vida diária e aprendizagem do braille e das outras competências que permitiram compensar as limitações associadas à deficiência visual. Através da história de Ray Charles fica assim realçado o papel desta estratégia de reabilitação e resiliência, dos pais e crianças, na baixa visão e cegueira na infância.

Vasco Miranda